Arthur Bispo do Rosário: divagações sobre bordados e fotografias

Luiz Eduardo Robinson Achutti

Arthur Bispo do Rosário: divagações sobre bordados e fotografias

ABSTRACT: the present article is composed of two Paris. In the first. I articulate some ideas on the subject of the images in a general way, and aspects of the work of Arthur Bispo do Rosário, particularly. I look for some approaches among the Bispo work and doing photographic. In the second, I present a photographic residing of the referred author’s work.

KEY WORDS: Arthur Bispo do Rosário, picture, plastic arts, mental health.

RESUMO: O presente artigo é composto de duas partes. Na primeira, articulo algumas ideias sobre a questão das imagens de uma maneira geral, e aspectos do trabalho de Arthur Bispo do Rosário, em particular. Busco algumas aproximações entre o trabalho do Bispo e o fazer fotográfico. Na Segunda, apresento uma leitura fotográfica da obra do refe¬rido autor.
PALAVRAS-CHAVE: Arthur Bispo do Rosário, fotografia, artes plásticas, saúde mental.
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Luiz Eduardo Robinson Achutti

Arthur Bispo do Rosário: divagações sobre bordados e fotografias

Antes de propriamente entrar no tema principal, o trabalho de Arthur Bispo do Rosário, parece importante falar das imagens, das diversas funções das imagens, visto que foi fundamentalmente imagética a obra que Bispo nos deixou. Para falar sobre as imagens, pretendo aproveitar algumas ideias de um antropólogo, um historiador e um filósofo, falo de Arlindo Machado (1994), Boris Kossoy (1993)² e Régis Debray (1993).
Muitos de nós talvez nunca tenhamos dado a devida importância à função das imagens nas nossas vidas. Vivemos, cada vez mais, produzindo e consumindo imagens, mas olhando-as com pouca atenção. Temos tanta fartura de imagens que presentemente chegamos ao ponto de aprender a lidar com verdadeiras miragens digitais. Refiro-me às imagens virtuais que os computadores vêm nos possibilitar.
Eu diria que, para examinarmos melhor este fato, deveríamos buscar comparações entre épocas, povos e lugares diferentes. No tempo de nossos antepassados primitivos, os já tão falados artistas que desenhavam nas paredes de suas cavernas, tinha-se certamente um mundo pobremente povoado pelas imagens. Eles não tinham espelhos, quadros, fotografias, cinema, vídeo, vitrines, revistas, propaganda, etc.
A capacidade de olhar é adquirida, é aprendida socialmente. Olhamos com os olhos de nosso tempo, com os pressupostos de nossa cultura, pelo viés do nosso grupo, ao tempero de nossas características psicológicas pessoais. E, a cada momento, estamos aprendendo a olhar as novas imagens que vamos produzindo. As imagens cumprem papéis diferentes conforme a época que se venha a analisar. No tempo das cavernas, as imagens não tinham a função de enfeitar ou comunicar algo. Elas cumpriam uma função mágica. É com a necessidade de duplicar a realidade que surge a capacidade de produzir imagens. Nossos antepassados precisaram desenhar um bisão na parede de sua caverna, pois esta era a forma que tinham de evocar forças mágicas que viessem a auxiliá-los nas difíceis tarefas, em um mundo cheio de dúvidas e mistérios.
Mais recentemente, no tempo das pirâmides, os homens produziram belas imagens, não para serem contempladas, mas sim para servirem de companhia, forma de homenagear os mortos ilustres. Nesse momento, as imagens passam a ter um papel estético – religioso. Inaugura-se a arte ³.
Para Régis Debray (1993), atualmente vivemos uma época na qual a imagem tem uma função, não mais mágica nem religiosa, mas sim econômica. Estamos vivendo um momento de banalização das imagens, que o autor passa a chamar de idade do olhar econômico. Segundo Debray, não teríamos mais imagens, apenas visualidades.
Neste rápido inventário sobre as questões das imagens, encontramos um lugar especial para uma forma singular de produzir imagens: a fotografia. Ela surge oficialmente na França, na metade do século passado, constituindo-se na primeira forma de criação de imagens sem a utilização da mão humana - o lápis da natureza como quis o inglês Talbot.4 Estava atendida a já então crescente demanda por fazer o duplo de cada um. Era a democratização do acesso ao retrato que antes fora privilégio daqueles que podiam pagar renomados pintores para possuir um retrato a óleo. Também com a fotografia chega-se ao aperfeiçoamento da capacidade de reprodução de obras de arte, e a consequente possibilidade de maior difusão das mesmas. O mundo nunca mais seria o mesmo. A fotografia passaria a ensinar uma nova forma de ver, e sua utilização começaria a ser efetivada nas mais diversas áreas do conhecimento humano.5
O convívio de um determinado grupo humano, seja ele primitivo ou moderno, pressupõe alguma forma de comunicação. Com a comunicação, os membros do grupo constróem sua cultura, e é através dela que, em última análise, encontram sua sobrevivência e manutenção enquanto grupo. Temos que compartilhar índices, ícones e símbolos para podermos nos comunicar. Devemos saber lidar no nível simbólico, interagir através de símbolos. As imagens ou os verbos podem ser mais ou menos compartilhados, dependendo do tipo de sociedade.
Dedico-me a pensar as imagens sem abrir mão da comunicação verbal, fato que fica evidente neste momento. A importância da comunicação através das imagens acentua-se a cada dia. Como diz Arlindo Machado, temos pensamentos visuais e nos comunicamos visualmente. Apenas não estamos aparelhados para trocar de forma direta esses nossos pensamentos visuais porque "a natureza não nos deu, desgraçadamente, um dispositivo de projeção incorporado ao nosso próprio corpo, para que pudéssemos botar para fora as imagens do nosso cinema interior"( 1994:09). Machado sugere que imaginemos dois seres que possuam uma pequena tela de televisão no meio da testa a projetar imagens um para o outro. O autor afirma que talvez seja pelo fato de possuirmos apenas aparelhos para a comunicação verbal, que os psiquiatras dêem tanta importância para a palavra.
Vivemos na sociedade complexa, sociedade moderna. Sociedade que instaurou a ideia de indivíduo. Compomos uma sociedade individualista. Absolutamente sós, pensamos projetos de vida próprios, temos direitos individuais e obrigações sociais. Somos, cada um de nós, pequenos mundos articulados em sociedade. Funcionamos através de símbolos. Nossos relacionamentos não são mais do que entendimentos simbólicos. Qualquer forma de discurso que venhamos utilizar, estará sempre mediada pelo universo simbólico daquela que será o receptor de nosso discurso. “A busca de entendimento por aproximações simbólicas é a forma de sociabilidade deste mundo dito civilizado.”
Arrisco-me a afirmar que essa discussão da possibilidade da sociabilidade dá-se pela via do simbólico, pertence também à área dos que pensam a saúde mental. Os não loucos constituem a média das pessoas que jogam bem o jogo da sociabilidade, que tratam de constantemente compatibilizar seus universos. Há pessoas que, por diversas razões, não entram no pacto dos códigos, na busca da saudável sociabilidade.
Durante 50 anos, Arthur Bispo do Rosário viveu recluso na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.6 Morreu há quase oito anos, em junho de 1989. Ele foi um criador, um artista. Passou boa parte de sua vida empenhado na tarefa de retrabalhar os elementos da realidade concreta que o cercava. Bispo construiu um discurso especial buscando dar concretude ao seu imaginário. Construiu seu discurso através de colagens, pinturas, esculturas, instalações e bordados. Fechado em seu quarto - permitindo somente a entrada de poucas pessoas - ele foi construindo sua obra, a qual há alguns anos chamei de o bordado de uma existência. Essa obra representou o Brasil, na Bienal de Veneza, de 1995.
No ano de 1990, me vi desafiado a fotografar algumas de suas obras expostas no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Foi uma experiência impactante, poucas vezes me senti tão impotente. Percebi que minha leitura fotográfica não teria como apreender a magnitude expressiva do trabalho que Bispo nos havia deixado. Como traduzir para o plano em preto e branco a realidade das imagens propostas por esse artista. Lembro-me de poder observar as pessoas estáticas por vários minutos, tentando penetrar nos mistérios de cada obra.
Ocorreu-me que o trabalho fotográfico guardava algumas características, que se aproximavam do tipo de trabalho do Bispo. O ato de fotografar é um ato de recriação da realidade. A partir de recortes de alguns elementos retirados dessa realidade e traduzidos para o plano, chega-se a uma segunda realidade, a realidade de uma fotografia na sua materialidade própria. Esta induzirá a uma terceira realidade, a realidade que se criará na mente daquele que se deparar com a fotografia (Kossoy, 1993). Por isso, a fotografia não pode ser confundida com a realidade, ela é uma recriação do real, uma das tantas maneiras de simbolização disponíveis.
Quando fotógrafo, faço nada mais do que colagens de recortes do real. Podem ser interpretações, mistificações, discursos, delírios, etc. Sei que minha fotografia será interpretada segundo os códigos e o universo simbólico de quem com ela se defrontar. Se colocada sob um microscópio, essa fotografia revelará ser composta de pequenas partículas de prata agrupadas, que, vistas desta forma, não referem, não significam absolutamente nada. Não sugerem código nenhum e, portanto, não levam a nenhuma possibilidade de entendimento.
Arthur Bispo do Rosário compunha seus bordados, suas esculturas e instalações, com restos de objetos recolhidos no dia-a-dia da Juliano Moreira. Ex-marinheiro, fez, de forma impressionante, sua caravela. Com restos de madeira e um aro com raios tortos, reinventou a roda do surrealista Duchamp. Ao apaixonar-se por uma estagiária, passou a criar utensílios domésticos para equipar uma casa, que ele de fato não tinha. Vestia um manto bordado na parte interna com nomes de dezenas de mulheres, manto que ele havia feito para subir ao céu. Seus trabalhos no plano eram lençóis bordados com fios de seus pijamas desfeitos. Vistos bem de perto eram infinitos fios de várias cores que não serviam para nada, mas que, bordados e vistos no conjunto, revelavam o imaginário que Bispo passava a limpo. O que inquieta a todos nós, que tentamos decifrar os códigos propostos por Arthur Bispo do Rosário, é a suspeita de que não teremos condições de compreender, na totalidade, a releitura da realidade que ele fez e deixou materializada.
Quando entramos na sua caverna, vimos que ele havia deixado inscrições por todas as paredes, inscrições essas que temos o dever de interpretar, pois é a única maneira possível de compreendermos quem foi Arthur Bispo do Rosário. É também uma forma de tentarmos compreender quem somos nós, e como funciona essa nossa louca vida.




Porto Arte, Porto Alegre, v. 8, n. 14, p.95 – 108, maio.1997


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NOTAS


¹ Texto e fotos apresentados no seminário Louca Vida, organizado pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre w Secretaria da Cultura da Prefeitura Municipal de Porto Alegre em 1995.
² Palestra realizada na Semana de Fotografia da Cidade de Porto Alegre, organizada em 1993 pela Secretaria da Cultura da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
³ Ver W. Benjamin em A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução.
 O Inglês William Henry Fox Talbot, considerado o inventor da fotografia na Inglaterra, chamava esta então nova técnica O lápis da natureza. Sobre este assunto ver História de la fotografia. Desde sus origenes hasta nuestros dias, escrito por B. Newhall.
 Guardando-se as devidas proporções, se poderia fazer um paralelo entre a importância do surgimento da técnica fotográfica, na metade do século passado, com o surgimento do computador há alguns poucos anos.
 Hospital para doentes mentais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução”. In: Os pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1980.
DEBRAY. Régis. Vida e morte da imagem. Uma história do olhar no ocidente. Petrópolis: Editora Vozes. 1993.
MACHADO, Arlindo. “As Imagens Técnicas: da Fotografia à Síntese Numérica”. In: Revista Imagens. n. 3, Campinas: Editora da Unicamp, 1994, p.8-14.